Mais do que gostar de ler e de literatura, tenho verdadeira paixão pelos livros como objecto, pela tipografia, pela encadernação, pela capa, até pelo tipo de papel escolhido. Gosto em igual medida de histórias, qualquer que seja o formato. Nesta nova fase da newsletter, falarei das histórias com as quais me cruzo, para lá dos livros que me acompanham sempre.
O ano passado redescobri a minha paixão pelo cinema. Um dos filmes que vi foi Dahomey da realizadora Mati Diop. A premissa é clara: em Novembro de 2021, 26 tesouros do reino de Daomé (Dahomey) deixaram, finalmente, Paris para regressar ao seu local de origem (o actual Benim). Durante o filme, acompanhamos as reflexões de uma das estátuas, a 26, no seu regresso num porão escuro e as discussões de um grupo de estudantes na Universidade de Abomey-Calavi.
Devo começar por confessar a minha ignorância sobre este reino, o que me parece ainda pior dado que estudei História e Relações Internacionais (claramente com uma visão demasiado eurocêntrica). Daomé foi uma potência militar e cultural nos séculos XVII e XIX que prosperou através do comércio, especialmente de escravos. Outro facto que não é referido no documentário e que só descobri ao pesquisar para este texto foi que o reino tinha um dos exércitos mais temidos da região, o único na história moderna composto por mulheres (aparentemente tal deveu-se ao elevado número de baixas masculinas, resultado das constantes guerras com os seus vizinhos). As guerreiras Agojie inspiraram um filme recente, A Mulher Rei, que ainda não tive a oportunidade de ver. No entanto, lembrei-me do livro The Shadow King (já traduzido em português) que conta a história da invasão da Etiópia (um dos poucos países independentes em África, à época) pela Itália, em 1935, e do papel das mulheres-soldado.
Voltemos a Dahomey. Em 1892, os franceses pilharam a quase totalidade do espólio do reino e levaram os tesouros para França. 129 anos depois devolveram 26 peças - uma ínfima porção. Em qualquer guerra ou invasão, há relatos de pilhagens pelos mais variados motivos: ganância e sobrevivência, ódio e preservação. Qualquer que tenha sido o motivo no passado, a restituição das obras de arte aos seus povos, que parece óbvia para muitos, não é assim tão clara para outros.
Ao discutirem a restituição, os estudantes acabam inevitavelmente por reflectirem sobre a colonização e a sua identidade. Uma das estudantes recusa-se mesmo a discutir estes assuntos em francês, sente que não pode falar sobre a sua identidade cultural na língua do colonizador. As opiniões dividem-se: uns consideram um insulto a devolução de apenas 26 peças (de um total estimado de 7000), outros perguntam-se se o governo do Benim terá as competências necessárias para cuidarem do seu património. Será que conseguem garantir a sua preservação adequada? Será que a colecção estará disponível para todos?
Podemos também perguntar-nos o que teria acontecido se o espólio tivesse ficado no Benim. Lembro-me muitas vezes da destruição dos Budas de Bamyan, Afeganistão, pelos Talibãs ou da atroz morte do arqueólogo responsável pelas ruínas de Palmira na Síria. Ambos são exemplos brutais da destruição intencional da história, do património, e da cultura de um povo.
As peças de Daomé continuam intactas, ainda que dispersas entre França e o Benim. Os símbolos não foram destruídos nem apagados, mas por mais de 100 anos, os seus descendentes não os puderam ver nem estudar. A 26, que nos fala na sua língua nativa, receia já não reconhecer a sua terra natal, tanto tempo esteve “perdida na escuridão do tempo”. Será que o património cultural se manteve presente no Benim, mesmo à distância? Será que a identidade de Daomé permaneceu inalterada com a ausência do seu espólio?
Dahomey é um dos exemplos. Lembro-me também de The Monuments Men, filme de 2014, sobre um grupo de soldados aliados cuja missão era salvar obras de arte da destruição e pilhagem pelos nazis. Muitas obras foram preservadas e, com elas, salvou-se também parte do património e da identidade colectiva europeia. Há ainda muitos casos pendentes de obras de arte que não foram devolvidas. No início deste ano, a Grécia tornou-se membro não permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas até 2027. Aproveitará a oportunidade para continuar a liderar a discussão sobre “a devolução ou restituição do património cultural para os países de origem”, sendo que uma resolução sobre o tema foi adoptada por consenso em Dezembro do ano passado.
Mati Diop foi clara no seu discurso de aceitação do Urso de Ouro, no ano passado, em Berlim:
“(…) Para reconstruir, temos de restituir. (…) Estamos entre aqueles que se recusam a esquecer.”