Violência
"É verdade que os seres humanos são fundamentalmente cruéis? É a experiência da crueldade a única coisa que partilhamos como espécie? A dignidade de nos agarramos a nada, só à auto-ilusão, escondendo-nos da simples verdade: que cada um de nós é capaz de ser reduzido a um insecto, a uma besta voraz, a um pedaço de carne? Ser degradado, abatido - é este o essencial da Humanidade, que a História tem confirmado como inevitável?"
Actos Humanos, Han Kang
Han Kang está no palco do auditório e quase nem se dá por ela. Quando começa a falar, com uma voz muito baixa, transmite uma sensação de calma. Ao ler passagens em coreano, quase nos esquecemos do que estamos ali a fazer. E, certamente, não associamos aquela pessoa calma, aqueles trechos numa língua estranha e suave, à violência. Não pensamos nela como alguém que escreve sobre bestas vorazes, pedaços de carne a apodrecer e seres cruéis.
"Ela era absolutamente normal. Não era bonita, mas também não era feia. Fazia as coisas sem entusiasmos de maior, mas também nunca reclamava. Deixava o marido viver a sua vida sem sobressaltos, como ele sempre gostara. Até ao dia em que teve um sonho terrível, e decidiu tornar-se vegetariana.
A Vegetariana, Han Kang
O maior fascínio de uma obra cultural é o mundo de possibilidades que abre. Uma história, para um leitor, pode ser sobre uma coisa e, para outro, uma completamente diferente. A Vegetariana tem como pano de fundo alguém que decide deixar de comer carne, após um sonho terrível. Actos Humanos conta-nos a história (real) de uma revolta estudantil e da consequente repressão. O que têm ambas em comum?
“A vida é uma coisa estranha, pensa, quando pára de se rir. Mesmo depois de certas coisas nos terem acontecido, não importa quão horrível a experiência, as pessoas ainda comem e bebem, tomam banho - vivem, por outras palavras. E, por vezes, riem-se. E, provavelmente, têm estes mesmos pensamentos também e quando se apercebem, voltam a lembrar-se de toda a tristeza que conseguiram, por breves momentos, esquecer."
A Vegetariana, Han Kang
Estas são histórias sobre desespero, e violência, histórias assustadoras, porque são tão reais. Han Kang escreve, de forma dura, mas poética, sobre a perda, a pressão (da sociedade, da família, dos outros, de nós mesmos). Escreve sobre pesadelos, repressão, sobre o poder e a brutalidade de que os humanos são capazes, especialmente nos pequenos actos. E de que como conseguimos continuar com a nossa vida, mesmo depois de uma transformação brutal e violenta. De uma maneira totalmente diferente, mas ainda assim avançamos. É algo que acontece a todas as suas personagens, de uma forma ou de outra, e também com a própria autora. O tal sonho terrível da Vegetariana foi o espoletar de um ciclo de violência ou o final desse mesmo ciclo? Houve alguma redenção para os que massacraram e para os que perderam alguém no massacre de Gwangju?
"Se ao menos os nossos olhos não fossem visíveis aos outros, pensa. Se ao menos pudéssemos esconder os nossos olhos do mundo."
A Vegetariana, Han Kang
Sim, os olhos dizem muito sobre os estados de alma. Mas olhamos realmente? Percebemos o que os outros nos querem dizer ou preferimos ignorar? O marido, o cunhado, a irmã falaram-nos sobre Yeong-hye, a vegetariana, mas não sabemos se a perceberam realmente. Pareciam querer curá-la e não perceber o seu processo. Nem nós, se calhar, a percebemos, porque lemo-la apenas em pequenos trechos de sonhos.
"O vidro é transparente, certo? E frágil. É essa a natureza fundamental do vidro. E é por isso que objectos feitos de vidro têm de ser manuseados com cuidado. Afinal de contas, se se partirem ou ficarem riscados, não servem para nada e temos de os deitar fora.
Antes costumávamos ter um tipo de vidro que não se podia partir. Uma verdade tão dura e clara que bem que podia ser feita de vidro. Pensando nisso, é só quando nos partimos que provámos que temos almas. Que o que realmente fomos eram humanos feitos de vidro."
Actos Humanos, Han Kang
Escrever é uma forma de catarse. Ler também. Uma maneira de não nos partirmos. Ou então de nos quebrarmos totalmente. Há livros que nos fazem esquecer da tristeza; estes adicionam-lhe camadas, quebram pontos de vista, não são o que parecem ser. Livros frágeis e pequenos que nos arrebatam; livros para nos fazer reflectir.
*Foto de Noah Buscher - Unsplash