2023 em Março, uma originalidade. Algumas pessoas fazem listas do ano em Novembro (pobre Dezembro, preterido para um limbo de inexistência, tal qual a semana entre o Natal e o Ano Novo); eu opto pela versão lenta (provavelmente lenta demais) e faço a minha retrospectiva das leituras de 2023 no final de Março.
Imagem dos livros de 2023: (da esquerda para a direita, de cima para baixo) Livro Sexto, Sophia de Mello Breyner Andresen; Embalando a minha biblioteca, Alberto Manguel; Contos do Gin-tonic, Mário Henrique Leiria; Prisoners of Geography, Tim Marshall; Os doentes do Doutor García, Almudena Grandes; A promessa, Silvina Ocampo; Temporada de Furacões, Fernanda Melchor; The seven moons of Maali Almeida, Shehan Karunatilaka
O favorito:
The seven moons of Maali Almeida, Shehan Karunatilaka
“Mirrors lie as much as memories do.”
Comecei o ano a ler o vencedor do Booker Prize de 2022. Nunca fui ao Sri Lanka e, apesar de estudar conflitos, sabia pouco sobre a guerra civil no país. O meu desconhecimento da história e cultura e a pouca familiaridade com as expressões usadas levaram a que demorasse bastante a ler o livro (a lentidão parece ser o mote deste texto).
Maali Almeida morreu. Está numa espécie de recepção, entre seres e espíritos confusos, recém-falecidos como ele, e outros com ar professional, que os encaminham. Maali percebe que não há muito a fazer quanto à sua morte prematura, mas que pode ainda descobrir como e porque morreu. Mais importante, pode assegurar-se que o seu bem mais precioso (as fotos que tirou nas suas missões como fotojornalista) são encontradas para, acredita ele, mudarem o rumo da guerra.
Acompanhamos Maali durante sete luas (os dias que tem antes da grande decisão), contudo, depressa percebemos que nada será simples e que há poucas personagens em quem o nosso protagonista possa confiar. Ironicamente, Maali - mentiroso, promíscuo e hábil jogador de póquer - é a personagem que menos nos mente, mesmo que nem tudo seja exactamente como ele se recorda.
“Evil is not what we should fear. Creatures with power acting in their own interest: that is what should make us shudder.”
O colorido da capa esconde o horror da guerra civil. Esconde as mentiras em catadupa, a corrupção. Esconde, essencialmente, a futilidade de tudo. Maali descobre a verdade sobre a sua morte, e descobre também que o trabalho da sua vida, o tal que iria mudar tudo, foi provavelmente em vão. No meio de fantasmas, demónios e morte, o mais assustador é a noção que tudo ficará exactamente igual. As personagens podem até mudar, mas o poder não.
“Though, as every gambler knows, the biggest killer in this godless universe is the random roll of the dice. Plain stinking jungle variety bad luck. The thing that gets us all.”
O odiado:
Temporada de Furacões, Fernanda Melchor
“Dicen que en realidad nunca murió, porque las brujas nunca mueren tan fácil…”
A Bruxa está morta.
Quem é a Bruxa? Porque morreu? Foi morta ou morreu naturalmente?
Ao longo destas 224 penosas páginas, lemos diferentes pontos de vista de personagens (tornadas narradores) que nos vão guiando até descobrirmos as respostas. Não tenho problemas com livros sem pontuação, fluxos de consciência e múltiplos narradores. Li em português, pelo que não tive dificuldade em entender as expressões tipicamente mexicanas da versão original. No entanto, apesar de ter falado deste livro diversas vezes durante o ano, detestei-o.
A violência é tão atroz que houve momentos em que tive de parar para apanhar ar. Não abandonei a leitura, porque quis entender se haveria algum motivo para toda a fealdade e brutalidade. Se havia, não percebi.
Bem sei que a realidade não faz sentido, por vezes. O bem e o mal não ficam em prateleiras distintas, coexistem em graus de intensidade diferentes. Há boa literatura que espelha o horror real, nem sempre sendo possível torná-la tolerável para o leitor. Mesmo sabendo tudo isto, e tendo já lido a minha quota parte de livros onde a violência tem destaque, continuo a achar as escolhas da autora questionáveis. Aliás, um pouco a par do aproveitamento do filão dourado que é Auschwitz, noto uma tendência para a exploração gratuita da violência, principalmente em literatura sul-americana, exemplo deste livro e da Cadela de Pilar Quintana.
Qual é o propósito de sujeitar as personagens a humilhação atrás de humilhação, sem qualquer hipótese de redenção, sem qualquer lição aprendida, sem qualquer crescimento ou mudança? Muitos dirão que a vida real é assim, que o México é assim. Não concordo.
A vida (e a literatura) são feitas de mudanças. A boa literatura dá margem às personagens para evoluírem (não necessariamente para melhor). Os finais nem sempre são felizes, mas há mudança (do bom para o mau, do mau para o bom). Temporada de Furacões partiu do péssimo e continuou a piorar, atrocidade atrás de atrocidade, sem qualquer resquício de esperança.
O livro foi adaptado a filme (disponível na Netflix). Por muito que o livro mais odiado tenha sido também o mais falado, não me sinto tentada a dar uma oportunidade ao filme.
A surpresa:
Contos do Gin-tonic, Mário Henrique Leiria
Carreirismo
“Após ter surripiado por três vezes a compota da despensa, seu pai admoestou-o.
Depois de ter roubado a caixa do senhor Esteves da mercearia da esquina, seu pai pô-lo na rua.
Voltou passados vinte e dois anos, com chófer fardado.
Era Director Geral das Polícias. Seu pai teve o enfarte.”
Uma pérola da literatura portuguesa, publicada em 1973, reeditada numa bonita edição da E-Primatur.
Há muito que ouvia falar destes Contos do Gin-Tonic. Numa das visitas à Feira do Livro do Porto, comprei esta nova edição. Posso dizer que me arrependo de não ter lido Mário Henrique Leiria mais cedo. A ironia finíssima e a atitude descontraída de quem se leva a sério, mas não muito a sério, deixaram-me completamente rendida a este livro.
“- Mas você não consegue escrever coisas compridas! Isso que faz é uma miséria.
- Coisas compridas como?
_ Bem, romances, crónicas autênticas, ensaios sólidos.
- Não, isso não sou capaz.
- Então você não é um escritor.
- Pois não. Quem se atreveu a chamar-me tal coisa? - aí é que me ia encanzinando.
- Não é ofensa, desculpa. Mas uma coisa comprida, por favor, não arranja?
- Olhe, o mais comprido que tenho é isto. E já foi difícil. Quando as coisas vão a ficar maiores, deito logo fora. Compreende, não é?”
Exemplo de uma certa particularidade portuguesa, recomendo vivamente a leitura destes e dos novos contos. Com um gin-tonic a acompanhar, obviamente.
Noivado
“Estendeu os braços carinhosamente e avançou, de mãos abertas e cheias de ternura.
-És tu Ernesto, meu amor?
Não era. Era o Bernardo.
Isso não os impediu de terem muitos meninos e não serem felizes.
É o que faz a miopia.”
A promessa, Silvina Ocampo
“Contei histórias à morte para que esta me poupasse vidas a mim e às minhas imagens; histórias que pareciam não ter fim.”
Nunca tinha lido Silvina Ocampo, a misteriosa escritora argentina. A escolha recaíu n’A Promessa, um romance publicado postumamente, em 2011. Segundo a editora Antígona, “A Promessa sofreu constantes reescritas desde os anos 60 e foi o labor dos últimos dias da autora, já atormentada pela doença”.
A nossa protagonista e narradora cai ao mar. O navio segue caminho e ela fica à deriva, sozinha com as suas memórias. Se sobreviver, promete escrever a história da sua vida. Gostei do livro, mas ainda não sei se foi a melhor escolha para conhecer Silvina Ocampo.
Os doentes do Doutor García, Almudena Grandes
“La cuestión no era la bondad o la maldad de las personas, sino la naturaleza de sus ideas.”
O quarto volume dos “Episodios de Una Guerra Interminable” (mas o único que li desta série) conta-nos a história do Doutor Guillermo García e de Manuel Arroyo Benítez, durante e depois da Guerra Civil Espanhola.
Misturando personagens imaginadas com reais, ficção com factos, é este tipo de histórias que mais gosto de ler, o que tornou a leitura destas 752 páginas bastante agradável, pese embora o seu pano de fundo.
Algumas notas soltas:
Conhecia a autora de nome, mas só li este livro porque era um dos que estava em exposição na Biblioteca de Santo Tirso, mais um motivo pelo qual gosto tanto de visitar bibliotecas.
Embirro particularmente com a tradução do título. “Os Pacientes” faria muito mais sentido que “Os Doentes”.
A Netflix tem no seu catálogo a adaptação deste livro a filme (que eu não vi).
Prisoners of Geography, Tim Marshall
“Why do you think your values would work in a culture you don’t understand?”
Tim Marshall foi jornalista e sabe escrever um bom livro. Prova disso foi o retumbante sucesso deste título e continuação da saga com The Power of Geography e The Future of Geography.
A geopolítica sempre foi uma tema de interesse. Ainda assim, para se compreender melhor o mundo, às vezes, é preciso voltar-se aos livros introdutórios, como este. Cada capítulo diz respeito a uma região/país do mundo: a Rússia, a China, os Estados Unidos, a Europa, o Mundo Árabe, a Índia e o Paquistão, o Japão e as Coreias, a América Latina e o Oceano Ártico.
Diria que teria feito mais sentido dedicar a atenção a apenas alguns dos países da América Latina e do Mundo Árabe, especialmente no caso desta última região. Tirando esse pequeno reparo, é realmente um bom livro de geopolítica para iniciantes: informativo sem ser maçador e ainda bastante actual.
Embalando a minha biblioteca, Alberto Manguel
“Já eu, raramente empresto um livro. Se quero que alguém leia um certo livro, compro um exemplar e ofereço-lho. Acredito que emprestar um livro é incitar ao furto.”
Sempre gostei de ler e sempre me senti em paz rodeada de livros. Por isso gosto tanto de bibliotecas (da minha, das públicas e de espreitar as das outras pessoas).
Alberto Manguel pensou que tinha encontrado o lugar definitivo para a sua biblioteca em Itália, mas a vida deu mais umas voltas que o esperado, o que o levou a ter de empacotar novamente os seus livros. Escreveu sobre o processo neste “Embalando a minha biblioteca”.
Livro Sexto, Sophia de Mello Breyner Andresen
"Tempo de solidão e de incerteza
Tempo de medo e tempo de traição
Tempo de injustiça e de vileza
Tempo de negação
Tempo de covardia e tempo de ira
Tempo de mascarada e de mentira
Tempo que mata quem o denuncia
Tempo de escravidão
Tempo dos coniventes sem cadastro
Tempo de silêncio e de mordaça
Tempo onde o sangue não tem rastro
Tempo de ameaça"
Haverá melhor forma de terminar o ano do que com a poesia de Sophia?
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Ainda não foi desta que voltei ao ritmo das leituras de outros tempos, mas 2024 parece estar já a compor-se. Veremos se a tendência se manteve no texto do próximo ano (em Janeiro ou Abril, nunca se sabe).